Dando continuidade ao artigo anterior, vamos refletir sobre o que deve ser conservado e aquilo que deve ser renovado. Podemos, em primeiro lugar, pensar no legalismo e na misericórdia, como atitude antiga e nova.
1. O LEGALISMO E A MISERICÓRDIA
Os mestres da Lei e os fariseus se apegavam demasiadamente ao legalismo, ao cumprimento irrestrito da Lei. Sua visão reduzida não lhes permitia ver além do que estava escrito. As leis deveriam ser cumpridas literalmente. Em outra ocasião, Jesus falou dos odres velhos, referindo-se à antiga estrutura do Judaísmo. Os odres velhos não são postos de lado porque são velhos, mas porque enrijecem. O odre é feito de pele e precisa ser macio e elástico, porque quando o vinho novo fermenta, o odre estufa, e se a pele for velha, arrebenta. Segundo o ensino de Jesus Cristo, precisamos de flexibilidade quando recebemos novas orientações (Ortiz, 1994, p. 80).
Os profetas anunciavam a vontade de Deus, que vai além das ofertas e sacrifícios, ultrapassa as exigências da Lei: “Desejo misericórdia e não sacrifícios” (Os 6.6). Jesus Cristo mencionou esta palavra quando seus discípulos foram criticados pelos fariseus porque colheram espigas num dia de sábado, dia em que também curou o homem com uma das mãos atrofiada (Mt 12.1-13). Quando Jesus falou do dono da casa tirando coisas velhas e novas do seu baú, referia-se às profecias e seu cumprimento, aos mandamentos antigos que deveriam ser praticados em espírito e em amor. As experiências novas de verdades antigas estariam no tesouro que os apóstolos utilizariam em seus ensinamentos futuros. Tudo que pertence ao reino de Deus é, ao mesmo tempo, antigo e novo, porque o reino é a vida divina, realizando-se perpetuamente na alma humana, até a perfeição.
Como pastores e mestres, vamos substituindo a estrutura antiga por novas, porque crescemos. A tradição não pode estar mais arraigada em nós do que a Palavra de Deus. Paulo escreveu sobre a renovação de nossa mente (Rm 12.1,2). Escreveu também sobre crescer em verdade e em amor (Ef 4.15). E mais: “O conhecimento traz orgulho, mas o amor edifica” (1 Co 8.1).
Outra aplicação para o dito de Jesus sobre coisas antigas e novas diz respeito ao relativo e ao absoluto.
2. O RELATIVO E O ABSOLUTO
Vivemos numa sociedade que defende o relativo, em detrimento ao absoluto. Isto significa que as ações e atitudes são aprovadas ou reprovadas, dependendo das circunstâncias e não do valor delas. A formação moral e ética do povo é fraca. Observamos esta relatividade até mesmo nas ciências.
No século passado, as descobertas científicas eram verdades absolutas. Hoje, elas são consideradas formas de conhecimento, porque, a qualquer momento, novas descobertas podem substituí-las. Há alguns anos, ninguém contestaria os ensinamentos dos professores em sala de aula. Hoje, os meios de obter conhecimento são muito amplos e, em algumas disciplinas, os alunos sabem mais do que seus professores. Os pais, antigamente, passavam aos filhos a orientação para o resto de suas vidas; hoje, os jovens vivem contestando o conhecimento e os valores dos pais.
Jesus Cristo, vez por outra, também confrontava os mestres da Lei e os fariseus com as palavras: “Vocês ouviram o que os antigos ensinaram…. mas eu digo a vocês”. Ele veio cumprir toda a Lei e, ao mesmo tempo, deu um novo colorido aos preceitos antigos. Ampliou o seu significado. Os princípios antigos permaneceram, sendo aplicados às novas circunstâncias. O absoluto não deveria ser abandonado, mas adaptado à nova realidade. A obediência aos mandamentos, a busca da santidade, o cuidado com os necessitados, o julgamento justo – eram e continuam sendo absolutos dos quais não podemos abrir mão. Entretanto, em Jesus Cristo, recebem uma nova visão: a visão do amor.
Realmente, os conhecimentos ficam ultrapassados. Os costumes se modificam com o tempo. Entretanto, os princípios morais e éticos permanecem através dos séculos. Os Dez Mandamentos, por exemplo, continuam válidos, à luz dos ensinamentos de Jesus Cristo. Ele deixou claro que a justiça do cristão deve ser superior à dos mestres religiosos: “Se a justiça de vocês não for muito superior à dos fariseus e mestres da lei, de modo nenhum entrarão no Reino dos céus” (Mt 5.20). Aos antigos foi dito: “Não matarás”. Hoje, Jesus afirma: quem se irar contra a irmão já está sujeito ao julgamento. Aos antigos foi proibido adulterar. Hoje, Jesus considera adúltero aquele que deseja a mulher do próximo. Os antigos podiam se vingar do próximo. Jesus nos ensina a oferecer a outra face.
A verdade, a honra, o respeito, a fidelidade, a honestidade, a perseverança, a justiça, o temor a Deus, a humildade, o amor e tantos outros valores não podem ser relativizados. São absolutos. São antigos, mas sempre renovados em nossa consciência, em nossa vivência de cristãos, principalmente se desejamos seguir a Jesus Cristo e se permitirmos o Espírito Santo guiar as nossas vidas.
A relatividade fica com os métodos, as técnicas e os costumes, que são modificados de tempos em tempos, de povo para povo, de país para país, de sociedade para sociedade, de igreja para igreja.
A terceira aplicação para o dito de Jesus sobre coisas antigas e novas diz respeito ao saudosismo e á visão real.
3. O SAUDOSISMO E A VISÃO REAL
Os mestres da Lei são como o dono da casa ou pai de família que tira coisas velhas e novas de um baú ou de um tesouro. Coisa velha é o saudosismo e coisa nova é a visão real. De vez em quando, recebemos, pelo Face ou pelo zapp, propagandas, divertimentos e imagens de produtos de 60 anos atrás. Quem já viu? Quem já brincou com um desses? Quem já usou? Quem ainda tem? Há 60 anos, a sociedade era muito diferente. As brincadeiras das crianças e dos adolescentes eram na rua. A violência era pequena. As comunidades eram restritas. Os imóveis eram comprados com notas promissórias. Não havia cartão de débito ou de crédito. Não havia supermercados, apenas empórios. Não havia shoppings. As salas de cinema ficavam nas ruas e praças. A educação era bancária, no dizer de Paulo Freire, pois os mestres eram detentores do saber. A exploração do espaço sideral estava começando. O homem alcançou a Lua em 1969. As viagens de avião serviam apenas a uma classe privilegiada. Ainda não havia internet. As mulheres começavam a trabalhar fora de casa.
Estas são apenas algumas características da década de 1960. Como o tempo voa. Como a humanidade avança. Em alguns aspectos, para melhor; em outros, para pior. Aqueles que, como eu, conseguiram atravessar de um século e de um milênio para outro, podem se sentir privilegiados. Existe um certo saudosismo, sim. Entretanto, olhamos para os dias atuais com uma visão realista. Quantas conquistas foram realizadas! Quantas invenções maravilhosas! Quantas facilidades para o dia a dia!
Na Bíblia há um salmo saudosista. É o de número 137 (ler de um a quatro). O salmista se encontrava cativo na Babilônia e refletia em sua vida na terra de Israel e em Jerusalém. Alguns cativos, que eram jovens quando foram para a Babilônia, tiveram a oportunidade de voltar para sua terra natal, depois de 70 anos de cativeiro. Quando o templo foi reconstruído, eles choraram, porque era bem inferior ao templo de Salomão (Ed 3.12,13). Entretanto, havia aqueles que gritaram de alegria, porque viam na reconstrução uma nova etapa para suas vidas. Mais tarde, celebraram a Páscoa do Senhor, com muita alegria.
As pessoas que têm mais de 60 anos de idade, hoje, podem se sentir privilegiadas, porque acumularam muitas experiências, participaram de muitos acontecimentos históricos, contribuíram com suas vidas para melhorar a sociedade, em alguns aspectos. Podem ser porta-vozes das maravilhas realizadas por Deus em suas vidas e na vida de muitos contemporâneos.
Através da educação, que têm a ver com os mestres da Lei do tempo de Jesus, todos os fatos do passado, ou seja, a história, quer do povo de Deus, quer do povo do Brasil, quer de nossa família, são passados para a geração atual. Através do conhecimento do passado podemos construir um presente e um futuro melhor. Não precisamos nos apegar ao passado, com saudosismo, mas é importante considerar os feitos, as descobertas, os erros, os ensinamentos, para que possamos aplicá-los devidamente à nossa vida.
O povo judeu é um povo que recorda os feitos de Deus, através de suas festas. Deus deixou bem claro que os pais deveriam contar tudo aos seus filhos, para que os mandamentos de Deus passassem de geração a geração (Dt 6.4-9). Para nós, o Antigo Testamento é a base para a compreensão do Novo e a Bíblia, em seu todo, é a base para a nossa vida cristã.
Deixemos de lado o saudosismo, mas não nos esqueçamos das lições do passado. Façamos como o apóstolo Paulo, quem disse: “esquecendo-me das coisas que ficaram para trás e avançando para as que estão adiante, prossigo para o alvo, a fim de ganhar o prêmio do chamado celestial de Deus em Cristo Jesus” (Fl 3.13,14).
CONCLUSÃO
“Ele lhes disse: Por isso, todo mestre da lei instruído quanto ao Reino dos céus é como o dono de uma casa que tira do seu tesouro coisas novas e coisas velhas”. O mestre de hoje precisa ter sabedoria para tirar coisas velhas e novas do tesouro de seus conhecimentos e vivências: a misericórdia, em vez do legalismo; os valores absolutos vivenciados no relativismo de métodos e costumes; e a vida real, baseada em fatos do passado.
Para agirmos com sabedoria, precisamos conhecer e viver o Reino de Deus, cujo Rei é Jesus Cristo e cujo reinado está em nossos corações, dia após dia, para a glória de nosso Deus.