“Zaqueu, porém, levantando-se, disse ao Senhor: Vê, Senhor, darei aos pobres metade dos meus bens, e, se prejudiquei alguém em alguma coisa,
eu lhe restituirei quatro vezes mais”. Lucas 19.8
Resumo
A desconsideração de uma pequena expressão como a conjunção condicional se, pode, ao longo do tempo, estigmatizar e deteriorar a identidade de uma pessoa….
Comparando os livros da Bíblia, aos clássicos da literatura mundial podemos classificá-los como long-sellers. Para entender melhor o fenômeno é preciso conhecer também as características dos best-sellers. Em termos comerciais, estes são livros que fazem muito sucesso e depois somem do mercado; em termos literários, são livros de uma história só, apenas a visível, a superficial, que uma vez lida não se consegue ler de novo. Já os long-sellers, comercialmente são livros que, continuam sendo vendidos ao longo dos anos, nos diversos países onde foram publicados. São livros de várias histórias entranhadas nas entrelinhas da história visível. Literariamente, estes podem ser lidos várias vezes ao longo da vida e, em todas as vezes encontramos detalhes significativos, lições não aprendidas nas leituras anteriores. São histórias de várias camadas, profundas, capazes de nos transformar para melhor à medida que nos confronta como leitores. Em ambos os sentidos a Bíblia é um long-seller, adicionando uma terceira característica, pois além do aspecto comercial e literário carrega em si o aspecto espiritual, ela é a Palavra de Deus.
A história de Zaqueu é uma das narrativas da Bíblia conhecidíssima no meio cristão, desde os púlpitos à classe de crianças, com suas ilustrações de um homem barbudo com roupas longas em cima de uma árvore. Abrindo um parêntesis só para esclarecer, essas ilustrações podem ser chamadas de “figuras”, nunca de “gravuras”, pois as gravuras pertencem ao campo das Artes, são feitas por um artista, de forma manual, com pequena tiragem, vendidas em galerias de arte. Fechando o parêntesis, acontece que, quando lemos uma história várias vezes, ficamos tentados a achar que a conhecemos muito bem. E é aí que corremos o risco de não enxergarmos detalhes, pequenas palavras que fazem toda a diferença no entendimento e ensino, na hermenêutica e exegese. Todas as vezes que tenho oportunidade de falar ou escrever para professores de crianças apresento um argumento recorrente: “não importa o quanto você conheça uma história bíblica, você precisa prepará-la de novo para ensinar”. Faço isso não somente por causa dos detalhes que nossa mente esquece, mas também, por causa do objetivo do encontro e do ensino principal que se deve extrair do texto.
Retornemos ao título do artigo e ao verso 8 parte b do capítulo 19 de Lucas: … “[…] e, se prejudiquei alguém em alguma coisa, eu lhe restituirei quatro vezes mais”. Vejamos o que acontece com essa parte do texto. O se como conjunção condicional, expressa uma hipótese, uma condição necessária para se realizar uma ação. Zaqueu afirma que vai dar a metade dos seus bens aos pobres e, na hipótese de ter extorquido alguma coisa de alguém, ele restituirá. Ao longo da minha vida cristã tenho visto pregadores e professores, estigmatizando Zaqueu, deteriorando sua identidade ao afirmarem categoricamente que ele era desonesto, ladrão.
Uma das definições dadas pelo sociólogo Erving Goffman para a palavra estigma é “comportamentos não convencionais”, quando uma pessoa não possui atributos importantes para um grupo social. Zaqueu sabia como os moradores de sua cidade viam os publicanos funcionários do governo romano. Apesar do seu nome significar “justo”, ele carregava a marca social de inabilitado para a aceitação plena.
Ao desconsiderarem o se que expressa uma hipótese, pregadores e professores generalizam o fato de que todos os cobradores de impostos da época de Jesus eram desonestos. Mateus também era, também, desonesto em sua profissão de coletor de impostos? Zaqueu falou demais? Zaqueu merece essa má fama? Vale a pena continuar omitindo a importância do se?
REFERÊNCIAS
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a identidade deteriorada. Tradução de Mathias Lambert. 2004.